Pelas nove da manhã desse dia de
Setembro cheguei enfim à estação de Évora. Nos meus membros espessos,
no crânio embrutecido, trago ainda o peso de uma noite de viagem. Um
moço de fretes abeirou-se de mim, ergue a pala do boné:
– É preciso alguma coisa, senhor
engenheiro?
Dou-lhe as malas, digo-lhe que há ainda
um caixote de livros a desembarcar.
– Então é dar-me a senhazinha, senhor
engenheiro.
– Mas não me trate por engenheiro. Sou
professor do Liceu.
Com passinhos curtos, anda dobrado, como
se tivesse dores de bexiga. A cara e os olhos, são vermelhos, ensopados em
sangue. Carrega tudo aos ombros com uma complicação de cordéis, promete-me uma
pensão muito boa, mesmo na Praça, "que é já ali", e convida-me a
segui-lo com os seus olhos lastimosos de aguardente. Está uma manhã bonita, com
um sol íntimo dourando o ar, um vento leve da planície, fresco de orvalhos. À
minha frente, o moço de fretes, agachado sobre si, vai dançando um estranho
ritmo de arame, com os seus passos saltitados. Mal o olho. Trago em mim um
pesadelo de ideias, um cansaço profundo que me halaga, me submerge. A Praça
ainda é longe, e não "já ali", como me garantira o moço. Mas a
angústia que me habita, a violenta redescoberta da morte, que eu acabo de
fazer, tornam-me estranho nesta cidade branca, separaram-ma dos meus olhos
vazios. Venho de luto. O meu pai morreu. Que têm que fazer, em face da minha
dor, da minha alucinação, estas árvores matinais da avenida que percorro, a
branca aparição desta cidade-ermida?
– Estamos quase, senhor engenheiro.
Vergílio Ferreira
(capítulo I do romance "Aparição",1959)
Mário Linhares, desenhador do quotidiano
Uma pequena homenagem, a Évora, pelo seu feriado municipal... que pena é domingo!!!
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